A efetividade das normas constitucionais e o conceito de políticas públicas
Segundo José Afonso da Silva as normas constitucionais são classificadas de acordo com a sua aplicabilidade e eficácia:
“Considerando três critérios distintos, concluiu que as normas constitucionais podem ser de eficácia plena e aplicabilidade imediata; de eficácia contida e aplicabilidade imediata; e de eficácia limitada (por princípio institutivo ou princípio programático)”. (BULOS, 2014, p.478)
Nesse sentido, o professor foi o precursor da classificação da eficácia das normas constitucionais aplicada contemporaneamente inclusive adotada como critério pelo Supremo Tribunal Federal, com algumas mudanças terminológicas.
De acordo com a classificação, para que algumas normas constitucionais produzam efeito na sociedade necessitam de outras normas que deverão ser confeccionadas pelo legislador infraconstitucional e aplicadas pelo executivo, é o caso das normas de eficácia limitada por princípio programático e institutivo.
Explica Silva
“Regras jurídicas programáticas são aquelas em que o legislador, constituinte ou não, em vez de editar regra jurídica de aplicação concreta, apenas traça linhas diretoras, pelas quais se hão de orientar os Poderes Públicos.” (SILVA, 137)
Todavia, “observe-se que só recentemente foi superada a tradicional distinção entre normas programáticas de aplicabilidade diferida e normas de aplicabilidade imediata, nos termos propostos por José Afonso da Silva” (FONTE, 2022, p.18)
Nesse contexto, as normas de eficácia limitada por princípio programático podem produzir seus efeitos não apenas através de lei mais também de políticas públicas, exemplo disso é quando a Constituição Federal de 1988 (CF/88), disciplina no art. 6º, a saúde, a educação, a alimentação e a renda básica entre outros direitos de segunda dimensão, mas, a constituição não diz como serão materializados.
Outro exemplo é o art. 3º da CF/88 sobre os princípios da República Federativa do Brasil:
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
Ademais, as normas de eficácia limitada por princípio programático são comandos destinados principalmente ao legislador para que coloque em prática determinados direitos declarados pela CF/88 através de leis e de políticas públicas, por isso, a CF/88, também é chamada de constituição dirigente.
Nessa direção, afinal, o que é política pública?
Conceituar política pública é tarefa árdua para a doutrina especializada, eles discutem o tema e ainda não há consenso, o que se sabe é que a política pública tem uma natureza eminentemente interdisciplinar dialogando com diversas áreas do conhecimento.
É o que ensina Dias e Matos:
“A expressão "política pública" engloba vários ramos do pensamento humano, sendo interdisciplinar, pois sua descrição e definição abrangem diversas áreas do conhecimento como as Ciências Sociais Aplicadas, à Ciência Política, a Economia e a Ciência da Administração Pública, tendo como objetivo o estudo do problema central, ou seja, o processo decisório governamental” (DIAS E MATOS, 2021, p.12).
Nesse caminho, há varias correntes doutrinarias, para Maria Bucci:
“programas de ação governamental, em cuja formação há um elemento processual estruturante: política pública é o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados [...]” (BUCCI, 2021, p.48).
Na opinião de Comparato, "conjunto organizado de normas e atos tendentes à realização de um objetivo determinado” (FONTE, 2022, p.16). Outro ponto de vista é de Eros Grau, “a expressão políticas públicas designa todas as atuações do Estado, cobrindo todas as formas de intervenção do poder público na vida social” (FONTE, 2022, p.16).
Em outro giro, Sechi e Coelho “é uma diretriz elaborada para enfrentar um problema público”. (2019, p.2) Para Fonte: “políticas públicas compreendem o conjunto de atos e fatos jurídicos que têm por finalidade a concretização de objetivos estatais pela Administração Pública” (2022, p.17).
Ensina Rocha: “Por políticas públicas se entende leis, programas, planos, projetos e atividades propostas pela Administração Pública que têm por objetivo efetivar direitos e promover o desenvolvimento sustentável no país” (2021, p.130).
Ademais, explica Dias e Matos que uma das características das políticas públicas é executar o que está previsto nas leis (federais, estaduais e municipais), sobretudo na Constituição, porque:
“as normas constitucionais criam direitos, mas não políticas públicas, assim esses direitos para se efetivarem na prática, precisam de políticas públicas, por exemplo as normas de eficácia limitada por princípio institutivo ou programático que necessitam de que necessitam, de ações políticas governamentais para se manifestarem na prática” (DIAS E MATOS, 2021, p.15).
Além disso, as políticas públicas apresentam outras características são elas: estabilidade no tempo, ou seja, apesar de estarem sujeitas a mudanças “tendem a responder a mudanças nas condições econômicas ou ao fracasso de políticas anteriores, não a mudanças políticas” (2021, p.18).
Outra particularidade é a adaptabilidade, ou seja, as políticas devem se sujeitar a adaptações e ajustes, em decorrência da mudança na sociedade, por exemplo, crises econômicas ou mesmo quando estiver claro que elas não funcionam mais.
Também, é traço da matéria em estudo a coerência e a coordenação, sendo assim, as políticas públicas devem se adequar a outras políticas similares para que possa haver ações bem coordenadas entre os atores que participam de sua formulação e implementação. A cooperação e a comunicação entre os operadores do processo de produção das políticas públicas é fundamental para a qualidade das mesmas.
Sobre o atributo da qualidade da implementação explica Dias e Matos:
“Qualidade da implementação e da aplicação afetiva. Uma política pode ser muito bem projetada, passar pelo processo de aprovação sem alterações e, ainda assim, ser completamente ineficaz se não for bem implementada e aplicada. A qualidade da implementação está associada à capacitação do corpo técnico (ou burocracia)”. (2012, p.18)
Ademais, o ponto nuclear das políticas públicas de qualidade, é a eficiência: “capacidade do Estado de alocar seus recursos escassos às atividades em que eles tenham os maiores retornos, em outras palavras, que assegure retornos sociais elevados”. (DIAS E MATOS, 2012, p.18)
Outrossim, deve ser considerado o interesse público ou seja, em certo grau as políticas públicas são comparadas a bens públicos, porque promovem o bem-estar social, assim concentram esforços no interesse coletivo em detrimento do interesse privado, “tendem a direcionar os benefícios privados para determinados indivíduos, facções ou regiões sob a forma de projetos com benefícios concentrados, subsídios ou brechas fiscais” (DIAS E MATOS, 2012, p.18).
Nessa conjuntura, afinal, o que é bem-estar social?
Ensina Dias e Matos:
“Tradicionalmente, o Estado desempenhou uma função social como agente econômico destinado a realocar os recursos escassos e amenizar as contradições inerentes ao próprio desenvolvimento das forças de reprodução do capital – como o aumento da desigualdade social e regional, entre outras, característica esta acentuada na configuração do Estado de Bem-Estar Social” (DIAS E MATOS, 2012, p.9).
Leciona Bonavides que: “o Estado social representa efetivamente uma transformação superestrutural por que passou o antigo Estado liberal”(2009, p.184). Sendo assim, com a mudança de paradigma, uma política pública implica o estabelecimento de uma ou mais estratégias orientadas à solução de problemas públicos e à obtenção de maiores níveis de bem-estar social.
Para Ramos, "os direitos servem para exigir do Estado e da comunidade as prestações necessárias para o bem-estar social fundado na igualdade” (p.89).
Segundo o art. 26 do Pacto de São José da Costa Rica:
“Os Estados-Partes comprometem-se a adotar providências, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados.”
Ou seja, os Estados nacionais devem cooperar entre si para dar efetividade aos direitos de segunda dimensão, quais sejam, sociais, culturais e econômicos, assim, atualmente, o bem-estar social depende também da convergência internacional para o desenvolvimento de políticas públicas globais, sobretudo na pós-modernidade onde os problemas são cada vez mais complexos e globais, a exemplo da pandemia da covid-19.
Explica Natália Masson:
“Já os direitos de segunda geração- normalmente traduzidos enquanto direitos econômicos, sociais e culturais - acentuam o princípio da igualdade entre os homens (igualdade material). São, usualmente, denominados "direitos do bem-estar", uma vez que pretendem ofertar os meios materiais imprescindíveis para a efetivação dos direitos individuais. Para tanto, exigem do Estado uma atuação positiva, um fazer (daí a identificação desses direitos enquanto liberdade positivas), o que significa que sua realização depende da implementação de políticas públicas estatais, do cumprimento de certas prestações sociais por parte do Estado, tais como: saúde, educação, trabalho, habitação, previdência e assistência social.” (2017, p.194)
Nesse sentido, o ideal de Estado de bem-estar social comunga as funções de promover questões políticas e econômicas; organizar a sociedade; controlar os fatores econômicos e as questões políticas e de gestão da vida pública. Além disso, segundo Dias e Matos as políticas públicas:
“(...) têm um aspecto coercitivo oficializado que os cidadãos aceitam como legítimo. Por exemplo: os impostos devem ser pagos, os sinais de trânsito devem ser obedecidos, as normas que regulam o funcionamento dos espaços públicos devem ser acatadas etc., e, em caso contrário, aqueles que não o fizerem serão penalizados”. (p.14)
Nesse contexto, como as políticas públicas podem garantir a dignidade da pessoa humana?
Ensina Ramos:
“a dignidade humana consiste na qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano, que o protege contra todo tratamento degradante e discriminação odiosa, bem como assegura condições materiais mínimas de sobrevivência” (p.76)
Apesar do conceito de dignidade da pessoa humana ser indeterminado e polissêmico, dele se extrai o mínimo existencial, ou seja, o básico que o individuo precisa para ter certa qualidade de vida. E esse elemento para ser implementado deve-se levar em consideração direitos disciplinados pela CF/88 como à saúde, à educação, à assistência social, o acesso a justiça, entre outras normas de eficácia limitada por princípio programático, ou seja, que necessitam de leis infraconstitucionais e de políticas públicas para serem executadas.
Ademais, a CF/88, além de colocar a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, sendo princípio geral orientador de todo o ordenamento jurídico, estabelece no art.227 caber à família, à sociedade e ao Estado assegurar à dignidade à criança, ao adolescente e ao jovem, também, no art.230 que a família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, defendendo sua dignidade e bem-estar.
Ou seja, o Estatuto do Idoso e o Estatuto da Criança e do Adolescente são exemplos de leis infraconstitucionais que regulamentam a aplicação de políticas públicas voltadas às crianças e idosos no Brasil em harmonia com o trabalho desenvolvido pelos Centros de Referência de Assistência Social, os Conselhos Tutelares, os Núcleos de Convivência dos Idosos e os Centros de Referência dos Idosos e outros órgãos públicos e da sociedade civil que fazem parte da rede de proteção a dignidade da pessoa humana desses grupos mais vulneráveis da sociedade, constituído assim legitima política de igualdade real, além de assegurar a tão almejada segurança jurídica nacional e contribuir para o ideal de justiça social.
Todavia, o Estado possui recursos limitados que devem ser usados para atender a um número considerável de demandas sociais e que tendem a crescer. Por isso é fundamental planejar com bastante racionalidade e coerência para que se alcance os propósitos ou finalidades. Assim as políticas públicas podem ser resumidas como:
“a gestão dos problemas e das demandas coletivas através da utilização de metodologias que identificam as prioridades, racionalizando a aplicação de investimentos e utilizando o planejamento como forma de se atingir os objetivos e metas pré-definidos.” (DIAS E MATOS, 2020, p.)
Nessa direção, são exemplos de políticas públicas: o Sistema Único de Saúde, criado pela lei 8.080 de 1990; a Lei Complementar 135 de 2010, chamada de lei da ficha limpa, que constitui verdadeiro marco legal e de iniciativa popular de combate a corrupção e a improbidade no serviço público esse mal social que suga recursos do Estado que poderiam ter sido destinados a execução de outras políticas públicas.
Nessa linha de raciocínio destaca-se o papel do Poder Judiciário, mais especificamente do STF em fiscalizar em sede de controle abstrato e em alguns casos definir a aplicação das políticas públicas, conforme ensina Grinover:
“A Constituição Federal, sem dúvida alguma, reconheceu ao Poder Judiciário a possibilidade de decidir sobre políticas públicas. O STF não é um terceiro ou quarto grau de jurisdição ordinária, mas sim uma Corte que decide sobre questões estratégicas e relevantes no cenário jurídico pátrio, muitas vezes, envolvendo definição de políticas públicas”. (p.455)
Nesse sentido, arremata Bulos:
“se, por um lado, a atribuição de formular e concretizar políticas públicas é tarefa típica das funções legislativa e executiva, de outro, é dever do oráculo da ordem jurídica - o Supremo Tribunal Federal - fiscalizar, em sede de controle normativo abstrato, o efetivo cumprimento das liberdades públicas e dos direitos revestidos de conteúdo programático, delineados na Carta Maior” (BULOS, 2014, p.378).
Ou seja, cabe ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário nos limites de suas respectivas competências previstas em lei contribuir e cooperar para a efetividade das políticas públicas, não obstante a participação da sociedade civil.
Logo, em última análise, as políticas públicas tem por finalidade fazer e prestar serviços públicos de qualidade para a população, assegurando a efetividade das normas constitucionais de eficácia limitada por principio programático, mediante atos administrativos práticos, interdisciplinares, proporcionais, razoáveis, estáveis, adaptáveis, coerentes, coordenados, eficientes que levem em consideração o interesse público para a promoção do bem-estar e da dignidade da pessoa humana.
REFERÊNCIAS
ROCHA, José Claudio. Inovação na administração pública / José Claúdio Rocha. – Brasília: PNAP; Recife: UPE / NEAD, 2021. P.130
GRINOVER, Ada P.; WATANABE, Kazuo. O Controle Jurisdicional de Políticas Públicas, 2ª edição. Grupo GEN, 2012. 978-85-309-4742-2. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/978-85-309-4742-2/. Acesso em: 02 abr. 2022.
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo. 25ª edição, revista e atualizada nos termos da Reforma Constitucional, Emenda Constitucional n.48, de 10.8.2005.
FONTE, Felipe de M. Políticas públicas e direitos fundamentais. Editora Saraiva, 2021.9786555597417.Disponívelem:https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555597417/. Acesso em: 31 mar. 2022.
SECCHI, Leonardo; COELHO, Fernando de S.; PIRES, Valdemir. Políticas Públicas: Conceitos, Casos Práticos, Questões de Concursos. Cengage Learning Brasil, 2019. 9788522128976.Disponívelem:https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788522128976/. Acesso em: 02 abr. 2022.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. —8.ed.rev. e atual. de acordo com a Emenda Constitucional n.76/2015- São Paulo: Saraiva, 2014, p.334
MASSON, Nathalia. Curso de Direito Constitucional.- 4.ed. ver e atual de acordo com Novo CPC, EC 84/2014 e EC 90/2015. São Paulo: Jus Podivm, 2016, p.1135
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos/ André de Carvalho Ramos.-4. Ed.- São Paulo: Saraiva, 2017. P.21
BRASIL. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso em 13/04/2022
DIAS, Reinaldo; MATOS, Fernanda. Políticas Públicas: princípios, propósitos e processos. São Paulo: Editora Atlas, 2012.
BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. São Paulo. 8ª edição. Malheiros Editores Ltda.2004. DALLARI, Dalmo de Abreu. Estado de direito e cidadania. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago. (Org.). Direito constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001.
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