Qual o papel da vítima no processo penal?

 



O estudo da vítima, também chamado de vitimologia é um dos objetos da criminologia, assim entender a vítima é fundamental para se compreender o crime enquanto fato social e jurídico e o seu devido tratamento.

Segundo Benjamim Mendelsohn pai dos estudos sobre a vitimologia: “é a ciência que se ocupa da vítima e da vitimização, cujo objeto é a existência de menos vítimas na sociedade, quando esta tiver real interesse nisso” (2012, p.44). Leciona Gonzaga: “em outras palavras, seria o comportamento da vítima na origem do crime e do criminoso.” (p.183)

Para a criminologia há uma distinção evidente entre as terminologias: "vítima" que está ligada especificamente aos crimes contra a pessoa; “ofendido” significa aquele que sofreu crime contra a honra; "lesado" os que sofreram delitos contra seu patrimônio.

“Para a Declaração dos Princípios Fundamentais de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder, das Nações Unidas (ONU-1985), define-se “vítimas” como “as pessoas que, individual ou coletivamente, tenham sofrido um prejuízo, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou mental, um sofrimento de ordem moral, uma perda material, ou um grave atentado aos seus direitos fundamentais, como consequência de atos ou de omissões violadores das leis penais em vigor num Estado membro, incluindo as que proíbem o abuso de poder”. (p.47)


Ademais, a Declaração da ONU, estabelece como direito humano da vítima: à informação ou seja o conhecimento sobre o andamento do inquérito policial e do processo penal; à proteção, isto é a diminuição dos efeitos da vitimização secundária; à participação- o papel de destaque no processo penal; à assistência seja médica, psicológica etc.; à reparação- direito a indenização e outra formas de reparação.

Nesse sentido, a criminologia classifica as vítimas em três grandes grupos: vitimização primária “é aquela que corresponde aos danos à vítima decorrentes do crime” ou seja, são os diversos danos causados a vítima, materiais, físicos, psicológicos, de acordo com a natureza da infração, a personalidade da vítima, sua relação com o agente violador, a extensão do dano etc. (p.47);

Vitimização secundária é o “sofrimento adicional causado pela dinâmica do sistema de justiça criminal (inquérito policial e processo penal)” (p. 47), ou seja, ocorre no processo de investigação e registro do delito realizados pelas instituições que exercem o controle social formal;

Vitimização terciária, ocorre a chamada cifra negra, isto é, a estimativa do número de crimes que não chegam ao conhecimento do Estado, seja porque a vítima não recebe o amparo necessários dos órgãos públicos e da sociedade, ou seja, que em alguns casos são desestimuladas para não declarar a notícia do crime as autoridades.

Nesse contexto no que tange a vitimização secundária e ao direito humano e fundamental de proteção da vítima em 2021, fora promulgada a lei 14.245, também chamada de lei Mariana Ferrer, caso que diga-se de passagem, chocou o Brasil, tem o objetivo de reduzir a vitimização secundária ou seja, o tormento causado pelo procedimento de investigação e pelo processo penal.

Nessa direção, essa lei se junta às normas previstas no Código de Processo Penal no art. 201 e seus parágrafos que tutelam a proteção ao ofendido, entendido pelo processo penal como sinônimo de vítima, lesado e de forma diferente pela criminologia. E ao mesmo tempo altera o CPP para assegurar mais proteção à vítima, incluindo o art. 400-A, em consonância com Sistema Internacional de Direitos Humanos.

“Art. 400-A. Na audiência de instrução e julgamento, e, em especial, nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:
  • I - a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;
  • II - a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.”

Ou seja, de acordo com o dispositivo legal o Estado-juiz deve proteger a integridade física e psicológica da vítima na audiência de instrução e na de julgamento, sobretudo quando se tratar de processo penal onde se investiga crimes contra a dignidade sexual, sob pena de responsabilidade civil, penal e administrativa.

Ademais, o CPP disciplina norma semelhante no art. 474-A, também alteração feita pela lei 14.245/2021 no que diz respeito aos desdobramentos do Tribunal do Júri, especificamente a instrução em plenário:


“Art. 474-A. Durante a instrução em plenário, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão respeitar a dignidade da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz presidente garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:
  • I - a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;
  • II - a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.”

Outrossim, a lei 11.340 de 2006 também chamada de Lei Maria da Penha, é um importante marco legal da implementação da redução da vitimização primária, secundária e terciária no Brasil, corrobora para esse entendimento a inclusão feita pelas leis 13.827 de 2019 e 14.188 de 2021 na lei Maria da Penha.

“Art. 12-C. Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física ou psicológica da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida:
  • I - pela autoridade judicial;
  • II - pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede de comarca; ou
  • III - pelo policial, quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia.
§ 1º Nas hipóteses dos incisos II e III do caput deste artigo, o juiz será comunicado no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas e decidirá, em igual prazo, sobre a manutenção ou a revogação da medida aplicada, devendo dar ciência ao Ministério Público concomitantemente.

§ 2º Nos casos de risco à integridade física da ofendida ou à efetividade da medida protetiva de urgência, não será concedida liberdade provisória ao preso.”

Todavia alerta Filho “no Brasil as ações afirmativas de tutela de vítimas da violência são ainda extremamente tímidas, na medida em que se vive uma crise de valores morais, culturais e da própria autoridade constituída, com escândalos de corrupção grassando nos três poderes da República”(2012, p.123)

Sendo assim, apesar das políticas públicas existentes que visam o combate às diferentes formas de vitimização, ainda serem delicadas e tênues. A iniciativa do legislador em comparação com a história das ciências penais e o grau de complexidade dos crimes representa um avanço.

Contudo, não obstante, as deficiências do sistema penal brasileiro importantes avanços foram normatizados recentemente e outros estão em curso, sobretudo a mudança de paradigma em que a vítima passou a ter um tratamento mais especifico e digno, preservando sua integridade física e psicológica.


Referências:


GONZAGA, Cristiano. Manual de Criminologia . [Digite o Local da Editora]: Editora Saraiva, 2022. 9786555597219. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555597219/. Acesso em: 03 mai. 2022.

FILHO, Nestor Sampaio P.; PENTEADO, Nestor S. Manual Esquemático de Criminologia . [Digite o Local da Editora]: Editora Saraiva, 2021. 9786555595291. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555595291/. Acesso em: 03 mai. 2022.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

BRASIL. Lei 3.689 de 1941. Código de Processo Penal, 1941. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm.

Comentários